4 de fevereiro de 2009

Fogo de Penitência

Poema escrito em 2006. Uma das minhas primeiras tentativas de fazer um texto que dialogasse com Fernando Pessoa. Ao ler recentemente o ótimo texto da amiga e escritora Ana Helena , lembrei-me que havia um dia escrito uma conversa em versos com o professor e que este diálogo devia estar perdido pelos meus arquivos antigos. Um dia devo reformulá-lo, mas deixo aqui o texto tal como foi escrito no meu primeiro ano de faculdade.


Fogo de Penitência


Toda a poesia malfeita se esvairece
A exorcizo em pira inquiridora
E no contorcer de suas chamas brancas,
Se internaliza até chegar ao átomo.

Todas as fogueiras não queimadas
Queimam no amassar do papel
Me atentam agora os sentidos e ouço claramente
No ranger da folha, o carbonizar da lenha

Se alguma Pessoa acha chuva na escrita
Eu afirmo que houve fogo anterior
A própria chuva que não chovia
E então meus olhos descobrem:

A água que cai e leva
Por vezes flui como nascente calma
Por outras, seu rebento lembra maré revolta
Que revolve cada gota e arrasta de volta ao nada.

Meu rosto sua ao segurar o grafite.
Há o medo de que as palavras sejam elas
E não que elas sejam as que queria eu que fossem
E tenham vida, gosto e não me obedeçam.

Toda palavra carrega o mal de ser minha
E eu carrego o dom de ser para elas
E eu as descarrego em fúria sobre a pauta
E elas me carregam até onde eu nunca chegaria sozinha.

Malditos os poetas que me deixaram ter rebanhos
Pois levo comigo a certeza de que há, em mim, um campo de girassóis
E por isso sofro:
Não consigo olhar para todos os lados.

Garanto porém, que se eu conseguisse,
Não estaria cá agora sonhando em poesia
Pois assim perderia tempo
Em sentir as relvas todas do mundo nas minhas mãos

Mas deixem descansar as relvas
Aprendi que só penso que seja maravilhoso tocá-las
Porque nunca em minha vida
Tive a oportunidade de deitar-me sobre elas.

Porém a água abrandou o incêndio
E a cada momento ela se faz mais intensa
E agora sei que é inútil acender fogueiras
Quando a chuva insiste em mostrar que só faz chover

Concluo que o poeta é iluminado pela chuva
E que o sol é o que evapora as coisas do mundo
Deixando-as claras diante dos olhos
Para que elas se reafirmem nos poemas

E que se tudo é nebuloso
Nuvens, idéias, pessoas
Espera pacientemente pelo vento
Que um dia fará derramar em ti.

Malditos os poetas que me levaram a bailes de máscaras
Pois descubro que nunca mais verei almas
E coloco agora a veste que tentaram me tirar Eles mesmos
E espero frente ao espelho branco ver-me nua uma vez

Intuo porém, que caso visse
Ao me deparar com a minha desgraça
Queimaria tal espelho por desgosto
E voltaria à dança por vergonha

Mas deixem bailar o corpo
O corpo de baile, o corpo da bailarina
Pois estes são mais agradáveis de observar
Já que os olhos são cegos para ver.

Então vou-me, vai-se e segue o dia
Como aquele que espera a noite
Cansado por entardecer
No crepúsculo dos anos que se passam

Sinto-me agora como dia que amanhece azul
Daqueles de palidez celeste
Que desponta após a tempestade
E se ilumina como se fosse uma coisa só

E não será mais necessário
Fazer fogo de penitência
Culpando as palavras mal escolhidas
Por um erro que é meu

E na dificuldade de expressar a integridade
Se afirmo que a mim pertence o erro
Ao menos confirmo
Que elas [ainda] são minhas

Então eis que na sensação de escrever o que me guardava
Transbordo os meus nimbus em mim, para mim
E afirmo sem medo:
Eu chovo.